"No tengo miedo al invierno con tu recuerdo lleno de sol”
(Eduardo Falú / Jaime Dávalos – Tonada del viejo amor)
Sexta-feira. Amanhece. Atravesso a ponte Rio-Niterói. O rádio anuncia a “lua de sangue” que logo virá com a eclipse lunar. Dentro do carro, pegando carona em minhas lembranças, vão comigo três irmãos de luta que se despediram da vida nessa semana: dona Baku – a pajé sateré-mawé, Pedro Inácio – o sábio tikuna e Rubinho - o antropólogo guaranizado. Dois deles, mais jovens que eu, ao furarem a fila, me relembram a finitude da existência. Invadido pela tristeza da perda e pelo medo da morte, busco refúgio no guitarrista argentino Eduardo Falú, cuja voz ressoa no carro cantando “La tonada del viejo amor”:
- No tengo miedo al invierno con tu recuerdo lleno de sol.
De repente, este verso tão singelo do poeta Dávalos me enche de coragem talvez porque sua força cresça com o sol que está nascendo ali, naquele momento, na baía de Guanabara, diante de mim. Embora enunciada no contexto amoroso da relação de um homem com sua amada, a frase poética se amplia e abarca outros horizontes. O sentimento gelado da perda irreversível se derrete, quando recordo as figuras luminosas de cada um dos três caronas. É o que faço agora. Afinal, a memória ensolarada derrota as trevas e nos aquece.
Dona Baku, a matriarca
Lembro apenas dois ou três contatos com dona Baku – como era conhecida Zelinda da Silva Freitas (1953-2018). Foi em 1979 ou 1980. Exercia eu a pomposa função de redator-chefe do Porantim, jornal mensal do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), cujo nome tem sua origem no remo sagrado dos criadores do guaraná. Com o teólogo Paulo Suss e o agora antropólogo Renato Athias entrevistamos Dico, líder Sateré, que denunciou a empresa petrolífera francesa Elf Aquitaine por dinamitar os rios e a floresta do território indígena, matando peixes, animais, plantas e poluindo os igarapés. Ao lado dele, dona Baku. Discreta, permaneceu calada, mas atenta,
Ainda menina-moça, ela havia migrado para Manaus logo após o golpe militar, deixando sua aldeia natal de Ponta Alegre, em Barreirinha (AM). Na cidade, trabalhou como empregada doméstica até o nascimento dos filhos. Posto que as patroas não aceitavam a presença de crianças, ela mudou de ramo. Passou a confeccionar pulseiras e colares para vendê-los no centro da cidade. Entre idas e vindas, se fixou em Iranduba, na aldeia Sahu-Apé. Pouco a pouco foi se firmando como liderança na luta por terra, saúde, educação. Fundou com sua irmã Zenilda a Associação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (AMISM), da qual se tornou coordenadora.
Recebida como membro da Associação dos Tuxauas dos Rios Andirá e Maraú, era a única mulher numa entidade que só congregava homens. Dominava a língua e conhecia as tradições melhor que muitos caciques. Além disso, nascida com o dom de pajé, diagnosticava doenças, receitava e preparava remédios, o que fez com sucesso até o final da vida.
Na segunda-feira (23), a primeira tuxaua mulher do médio Amazonas, a matriarca e pajé Zelinda Baku, recebeu as últimas homenagens de seus amigos e parentes. Líder reconhecida fora de sua aldeia, a notícia de sua morte se espalhou por mais de 100 comunidades dos rios e igarapés, onde vivem cerca de 15.000 índios Sateré-Mawé. As organizações indígenas e seus amigos das universidades emitiram notas nas redes sociais, manifestando seu luto. Agora ela repousa em sua aldeia, ao pé do Cipó Alho. A lembrança de suas lutas nos conforta e anima.
Ngematücü: o clã da onça
A primeira vez que encontrei o outro carona de minhas lembranças, o tikuna Pedro Inácio Pinheiro (1944-2018), foi em 1995, no curso de formação de professores realizado na Aldeia Filadélfia, em Benjamin Constant (AM), quando encantou a todos com seu verbo inflamado grávido de sabedoria. Reverenciado pelos povos do Alto Solimões como fundador do Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT) e como líder do movimento pela demarcação das terras, trazia no corpo marcas de balas do massacre no igarapé do Capacete, em 1988, quando foi ferido por pistoleiros.
Pertencente ao clã da onça, Ngematücü, “aquele que não tem pinta”, narra sua trajetória de vida no livro bilíngue Tchorü Duṻṻ güca' Tchanu - Minha Luta pelo meu povo (Eduff 2015), organizado pela linguista Marilia Facó, que traduziu o texto com apoio dos professores bilíngues. Está tudo lá: nascimento, infância, saída da aldeia, enfrentamento com seringalistas e madeireiros, o movimento indígena e as assembleias em Manaus, Brasília, Rio e São Paulo.
Pedro Inácio acabou se tornando porta-voz Tikuna, dos quais 55 mil vivem no Brasil, 8 mil na Colômbia e 7 mil no Peru. Ele já era liderança de expressão nacional desde 1983, quando encontrou, em Brasília, o deputado Mário Juruna e com ele discutiu o encaminhamento da luta pela demarcação de terras, o que foi registrado pelas lentes de sua amiga Jussara Gruber.
No início do ano, já doente, conversou com dez mestrandos da UFRJ na aldeia Filadélfia. “Mesmo ainda enfraquecido fisicamente, falou na língua tikuna, foi gravado e filmado pelos professores. Os mesmos olhos brilhantes e vibrantes, a mesma voz firme, a mesma desenvoltura. Na palavra e na vida, na luta permanente, Pedro foi, é e sempre será uma inspiração” – diz Marília Facó. Jussara Gruber, que tem um arquivo com muitas fotos de Pedro Inácio, acrescenta que ele “sempre acreditou que as coisas podiam mudar. Que lutar valia a pena”.
Isso fica evidente também no vídeo “Uma assembleia Ticuna”, de Bruno Pacheco de Oliveira, realizado no Alto Solimões, exibido no ano 2000 no auditório da Folha de SP, seguido de conversa do público com Pedro e seu amigo João Pacheco, antropólogo do Museu Nacional.
- Eu morro por ele, por este meu povo (...). Por isso eu morro, por ela, esta terra, todas as coisas que acontecerem, por ela eu morro, por isso, quando for assim – declarou Pedro Inácio no livro da Eduff.
Foi assim. Morreu nesta terça-feira (24) no Centro de Controle de Oncologia, em Manaus. O corpo foi levado para sua aldeia Vendaval, no município de São Paulo de Olivença. “O povo Tikuna perde mais um de seus sábios guerreiros” – manifestou a candidata a vice-presidente da República, Sônia Guajajara.
O guaranizado Rubinho
A última vez com Rubem Ferreira Thomaz de Almeida (1950-2018) ocorreu há três meses, 19 de abril, numa mesa-redonda na Uerj que discutiu o filme Martírio. Nesta quinta-feira (26), não resistiu à cirurgia para a retirada de um tumor. Seu colega e amigo, Antônio Carlos de Souza Lima, do Museu Nacional, assinou texto memorável sobre a trajetória do antropólogo que desde 1973 pesquisou, trabalhou, publicou e militou com os Kayowá-Nhandeva, com quem mantinha um “vínculo visceral” e cuja língua dominava com fluência.
Fundador do Greenpeace Brasil e seu primeiro diretor-executivo, Rubinho foi “crítico ferrenho das teorias da aculturação e do culturalismo que predominavam na leitura antropológica acerca dos Guarani até o início dos anos 1980” e um dos pioneiros da geração de antropólogos que aliaram a qualidade da produção acadêmica ao “compromisso político-moral e existencial com os povos indígenas” – lembra Souza Lima, que conclui:
- Amigo solidário, generoso, alto astral, parceiro leal nas lutas do povo com quem viveu, “enfrentou a perspectiva da morte como viveu: de modo íntegro, honesto, verdadeiro”.
Tonico Benites, o primeiro kaiowá que se doutorou em antropologia, deu um depoimento no qual destacou a contribuição decisiva desse antropólogo que se guaranizou. “Rubinho já está com Nhanderu” – escreveu.
Com a morte dos três nesta última semana de julho, perdem os índios, perde o Brasil, perde a antropologia. Nesses tempos de desencantos, de longo inverno que nos afunda na solidão, de luas que sangram, de eclipses que bloqueiam o sol, até nós, que não convivemos mais intensamente com eles, ganhamos aquilo que nos deixaram para combater o desânimo: a memória ensolarada, um “recuerdo lleno de sol”.